"Ai que preguiça..."

[...] Mas cair-nos-iam as faces, si ocultáramos no silêncio, uma curiosidade original deste povo. Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra. [...] Mas si de tal desprezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões! [...]" (ANDRADE; 1993. p. 66.)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Disseram-me

As gramáticas normativas, comumente, pregam que em Língua Portuguesa nenhum pronome oblíquo átono pode iniciar frases, ou nas palavras de um dos maiores gramáticos desse país, Domingos Paschoal Cegalla: "...não se abre frase com o pronome oblíquo". Mas nós sabemos que essa regrinha, chamada de ênclise, não é uso comum no português não-padrão e muito menos no português culto. Engana-se aquele que pensa nunca haver usado um único pronome oblíquo átono para iniciar uma frase. Todavia não venho dizer o que está certo ou errado em Português, apenas deixar aqui uma crônica de Luís Fernando Veríssimo. Deixemos para depois uma análise da colocação pronominal na língua viva e venhamos à crônica.

 "Papos

- Me disseram...

- Disseram-me.

- Hein?

- O correto é "disseram-me". Não "me disseram".

- Eu falo como quero. E te digo mais... Ou é "digo-te"?

- O quê?

- Digo-te que você...

- O "te" e o "você" não combinam.

- Lhe digo?

- Também não. O que você ia me dizer?

- Que você está sendo grosseiro, pedante e chato. E que eu vou te partir a cara. Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?

- Partir-te a cara.

- Pois é. Parti-la hei de, se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me.

- É para o seu bem.

- Dispenso as suas correções. Vê se esquece-me. Falo como bem entender. Mais uma correção e eu...

- O quê?

- O mato.

- Que mato?

- Mato-o. Mato-lhe. Mato você. Matar-lhe-ei-te. Ouviu bem?

- Eu só estava querendo...

- Pois esqueça-o e para-te. Pronome no lugar certo é elitismo!

- Se você prefere falar errado...

- Falo como todo mundo fala. O importante é me entenderem. Ou entenderem-me?

- No caso... não sei.

- Ah, não sabe? Não o sabes? Sabes-lo não?

- Esquece.

- Não. Como "esquece"? Você prefere falar errado? E o certo é "esquece" ou "esqueça"? Ilumine-me. Me diga. Ensines-lo-me, vamos.

- Depende.

- Depende. Perfeito. Não o sabes. Ensinar-me-lo-ias se o soubesses, mas não sabes-o.

- Está bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser.

- Agradeço-lhe a permissão para falar errado que mas dás. Mas não posso mais dizer-lo-te o que dizer-te-ia.

- Por quê?

- Porque, com todo este papo, esqueci-lo."

(Crônica extraída do livro "Comédias para se Ler na Escola".)

Cristo, o Educador

Há algum tempo recebi por e-mail um texto que reflete bastante a situação da educação no Brasil hoje. Abaixo está o texto de que falo, na íntegra, seguido do link para o blog de onde o retirei.


Naquele tempo, Jesus subiu a um monte seguido pela multidão e, sentado sobre uma grande pedra, deixou que os seus discípulos e seguidores se aproximassem. 
Ele os preparava para serem os educadores capazes de transmitir a lição da Boa Nova a todos os homens. Tomando a palavra, disse-lhes:
 - “Em verdade, em verdade vos digo:
 Felizes os pobres de espírito, porque  deles é o reino dos céus.
 Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque  serão saciados.
 Felizes os misericordiosos, porque eles...”
 Pedro o interrompeu:
 - Mestre, vamos ter que saber isso de cor?
 André perguntou:
- É pra copiar?
 Filipe lamentou-se:
- Esqueci meu papiro!
 Bartolomeu quis saber:
 - Vai cair na prova?
 João levantou a mão:
 - Posso ir ao banheiro?
 Judas Iscariotes resmungou:
 - O que é que a gente vai ganhar com isso?
 Judas Tadeu defendeu-se:
- Foi o outro Judas que perguntou!
 Tomé questionou:
- Tem uma fórmula pra provar que isso tá certo?
 Tiago Maior indagou:
 - Vai valer nota?

 Tiago Menor reclamou:
- Não ouvi nada, com esse grandão na minha frente.
 Simão Zelote gritou, nervoso:
 - Mas porque é que não dá logo a resposta e pronto!?
  Mateus queixou-se:
 - Eu não entendi nada, ninguém entendeu nada!

 Um dos fariseus, que nunca tinha estado diante de uma multidão nem ensinado  nada a ninguém, tomou a palavra e dirigiu-se a Jesus, dizendo:
 - Isso que o senhor está fazendo é uma aula? Onde está o seu plano de curso e a avaliação diagnóstica? Quais são os objetivos gerais e específicos? Quais são as suas estratégias para recuperação dos conhecimentos prévios?

 Caifás emendou:
- Fez uma programação que inclua os temas transversais e atividades integradoras com outras disciplinas? E os espaços para incluir os parâmetros curriculares gerais? Elaborou os conteúdos conceituais, processuais e atitudinais?
Pilatos, sentado lá no fundão, disse a Jesus:

 - Quero ver as avaliações da primeira, segunda e terceira etapas e reservo-me o direito de, ao final, aumentar as notas dos seus discípulos para que se cumpram as promessas do Imperador de um ensino de qualidade. Nem pensar em números e estatísticas que coloquem em dúvida a eficácia do nosso projeto. E vê lá se não vai reprovar alguém! Lembre-se que você ainda não é professor titular...
 
Moral da história: "Nem Cristo aguentaria ser professor nos dias de hoje" } 
 
Fonte: SuperDaHora

sábado, 16 de julho de 2011

Erro de Português?

Certa vez fui mostrar à diretora de uma escola em que trabalhei um poema produzido por uma aluna da quinta série do ensino fundamental; ao ver o texto, fez uma careta, daquelas quando pisamos em um espinho, e disse "é... mas tem que melhorar o português". Pense! O que vale mais? A produção ou uns meros erros que não são de português? Pois é isso mesmo! O problema é que muito se confunde ortografia com língua, ou melhor dizendo, professores de matemática, história, geografia, os próprios professores de língua portuguesa, pedagogos, médicos, advogados, jornalistas, pais, tios, avós e um imensa lista fazem essa confusão.
A ortografia de uma língua é maneira pela qual se tenta representar convencionalmente os seus sons num papel. A língua, no nosso caso a portuguesa, possui regras de funcionamento (aqui não me refiro à gramática normativa), essas regras se organizam de acordo com as disposições do sistema linguístico e de acordo com os próprios falantes/escreventes, pois estes tem o poder de criar, recriar, modificar e combinar os elementos da língua.
Uma criança quando não escreve algumas palavras conforme a ortografia vigente, não significa que ela não sabe português, e muito menos que não consegue se expressar direito. Eis aí um grande equívoco de quem assim pensa: imagine uma criança de 5 anos de idade, certamente ela ainda não domina a modalidade escrita da língua, no entanto, expressa-se pela fala perfeitamente. Comunica-se em sua língua materna, o que só pode comprovar que ela sabe português tanto quanto qualquer um de nós letrados.
Muitas crianças têm suas produções jogadas no lixo simplesmente porque o professor de língua portuguesa (ou qualquer outro adulto), aquele que deveria incentivar, repreende e escanteia por conta de um preconceito. Mas aí você deve se questionar "e se não o corrigirmos, ele não aprenderá a ortografia aceita". Não falo de não corrigir, mas de não lhe passar uma correção justamente no momento em que ele está mostrando sua produção. A correção é algo que pode ser trabalhado. O professor pode observar as digressões e elaborar atividades em cima delas, a serem trabalhadas noutro momento. Ou, se for corrigir no ato, buscar um jeito que a criança não seja reprimida: elogiar o texto dela, dar valor ao conteúdo ajuda bastante na correção ortográfica. E ela, logicamente, vai se sentir satisfeita por perceber que você se interessa por aquilo que ela tem para te mostrar. Seja lá como se pretenda trabalhar a ortografia, o importante mesmo é incentivar a escrever, pois quanto mais essa criança escrever mais se apodera da ortografia "correta". Ler, escrever; ler, escrever; escrever, ler; escrever, ler; e depois ler, escrever novamente consistem na prática eficaz para a absorção da modalidade escrita da língua, e por sua vez, de sua ortografia oficial.
Eu, honestamente, não sei a ortografia de todas as palavras, e seria um hipócrita se dissesse que todas as vezes que escrevo não tenho uma única dúvida quanto à maneira de grafar alguma palavra. Nesses momentos vou pro dicionário!

sábado, 2 de julho de 2011

Gerundismo é feio

Quem nunca ouviu falar de gerundismo? Ou quem nunca ouviu o outro criticar o telemarketing porque está cheio dos gerundismos? Mas antes de adentrar a “questão gerundista”, deixem-me explicar a causa da escritura dessas linhas.
 
Recentemente ouvi um podcast bastante conhecido no mundo dos blogs (pelo menos penso que seja) quando em um dado momento da gravação o podcaster diz “Nós estaremos avisando...”. Logo em seguida o seu colega o repreende por usar o “gerundismo”. A justificativa para não usar tal estrutura: são dois verbos quando somente um basta. Segundos depois alguém mais ao fundo reclama que “é feio”.
 
Duas coisas: não está errado e tampouco é feio. Não tenho por pretensão tratar do certo e do errado na gramática normativa, mas abordar uma estrutura viva e muito bem usada na língua portuguesa, o gerúndio. Também não tenho interesse em explicar o que é o gerúndio, mas constatar sua existência na língua. E Já que a dúvida dos prescritivistas é se isto ou aquilo está certo ou errado na gramática, restrinjo-me a dizer que, pensando na tradição gramatical, está completamente correto o uso do gerúndio. Basta abrir qualquer gramática, sendo dos conceituados Celso e Cunha, do reconhecido Bechara, ou não, ver-se-á que o gerúndio está lá, entre as formas nominais do verbo.
 
E quanto ao feio? Feio que nada! Mas grandes escritores não ficam por aí de gerundismo, seus mais lindos poemas e romances não têm dessas coisas. “Por ti – as noites eu velei chorando, Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!” Escreveu Álvares de Azevedo em Soneto. Carlos Drummond de Andrade ao ver a amada “caída na areia do circo e o leão que vinha vindo”, deu “um pulo desesperado” e o leão comeu os dois na Balada de Amor Através das Idades. O Dom Casmurro de Machado de Assis deixou claro que a porta que ligava sua casa a de Capitu “abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro”. Provavelmente estes escritores não sabiam quão é feio usar o gerúndio. Não sabiam o português bonito, o português correto! Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras e um dos maiores cânones da literatura brasileira, certamente, deveria ter tido vergonha de escrever tais absurdos. Talvez Drummond merecesse ser preso pelos crimes cometidos contra a língua. Azevedo, no mínimo, não soube chorar nem sorrir.
 
O gerundismo foi/é o neologismo usado para se referir às pessoas que usa(va)m o gerúndio em excesso, principalmente o pessoal do telemarketing com o “vou estar transferindo”. Contudo, o preconceito que girou em torno do termo “gerundismo” acabou por criar a ideia de que o gerúndio é algo errado e inaceitável, ou melhor, criou a ilusão de que gerundismo e gerúndio são simplesmente a mesma coisa. Como já dito, o gerúndio é a forma nominal do verbo que representa uma ação contínua. E o gerundismo é uso desmedido da construção verbo ir conjugado + verbo estar no infinitivo + gerúndio: “Vou estar transferindo sua ligação para o próximo setor, para que o sr. possa estar confirmando os seus dados; e ao término da ligação, o sr. vai estar recebendo o protocolo de nosso atendimento.” Certamente a construção ir+estar+gerúndio tende a soar artificial e a um falso cumprimento do prometido, assim como a repetição excessiva demonstra ausência de domínio ou desconhecimento de outras estruturas. Um outro problema é quando temos uma ação pontual como enviar um e-mail e você simplesmente diz “Vou estar enviando um e-mail ao meu superior.” Esse ato enunciativo seria sintaticamente aceitável, do ponto de vista apenas estrutural (sem entrar na questão se o estrutural é suficiente), mas semanticamente confuso.  Contudo enunciações como “Passei a manhã de domingo cozinhando.”, “Estava estudando para a prova de história.” e “Estaremos avisando nossos ouvintes.” são completamente possíveis tanto do ponto de vista sintático quanto semântico. Elas indicam ações de continuidade e não pontualidade. Por isso não confundir gerúndio com ir+estar+gerúndio, e não sair por aí corrigindo as pessoas pelo simples senso comum ou pelo “achismo”, mero preconceito.