"Ai que preguiça..."

[...] Mas cair-nos-iam as faces, si ocultáramos no silêncio, uma curiosidade original deste povo. Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra. [...] Mas si de tal desprezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões! [...]" (ANDRADE; 1993. p. 66.)

sábado, 16 de julho de 2011

Erro de Português?

Certa vez fui mostrar à diretora de uma escola em que trabalhei um poema produzido por uma aluna da quinta série do ensino fundamental; ao ver o texto, fez uma careta, daquelas quando pisamos em um espinho, e disse "é... mas tem que melhorar o português". Pense! O que vale mais? A produção ou uns meros erros que não são de português? Pois é isso mesmo! O problema é que muito se confunde ortografia com língua, ou melhor dizendo, professores de matemática, história, geografia, os próprios professores de língua portuguesa, pedagogos, médicos, advogados, jornalistas, pais, tios, avós e um imensa lista fazem essa confusão.
A ortografia de uma língua é maneira pela qual se tenta representar convencionalmente os seus sons num papel. A língua, no nosso caso a portuguesa, possui regras de funcionamento (aqui não me refiro à gramática normativa), essas regras se organizam de acordo com as disposições do sistema linguístico e de acordo com os próprios falantes/escreventes, pois estes tem o poder de criar, recriar, modificar e combinar os elementos da língua.
Uma criança quando não escreve algumas palavras conforme a ortografia vigente, não significa que ela não sabe português, e muito menos que não consegue se expressar direito. Eis aí um grande equívoco de quem assim pensa: imagine uma criança de 5 anos de idade, certamente ela ainda não domina a modalidade escrita da língua, no entanto, expressa-se pela fala perfeitamente. Comunica-se em sua língua materna, o que só pode comprovar que ela sabe português tanto quanto qualquer um de nós letrados.
Muitas crianças têm suas produções jogadas no lixo simplesmente porque o professor de língua portuguesa (ou qualquer outro adulto), aquele que deveria incentivar, repreende e escanteia por conta de um preconceito. Mas aí você deve se questionar "e se não o corrigirmos, ele não aprenderá a ortografia aceita". Não falo de não corrigir, mas de não lhe passar uma correção justamente no momento em que ele está mostrando sua produção. A correção é algo que pode ser trabalhado. O professor pode observar as digressões e elaborar atividades em cima delas, a serem trabalhadas noutro momento. Ou, se for corrigir no ato, buscar um jeito que a criança não seja reprimida: elogiar o texto dela, dar valor ao conteúdo ajuda bastante na correção ortográfica. E ela, logicamente, vai se sentir satisfeita por perceber que você se interessa por aquilo que ela tem para te mostrar. Seja lá como se pretenda trabalhar a ortografia, o importante mesmo é incentivar a escrever, pois quanto mais essa criança escrever mais se apodera da ortografia "correta". Ler, escrever; ler, escrever; escrever, ler; escrever, ler; e depois ler, escrever novamente consistem na prática eficaz para a absorção da modalidade escrita da língua, e por sua vez, de sua ortografia oficial.
Eu, honestamente, não sei a ortografia de todas as palavras, e seria um hipócrita se dissesse que todas as vezes que escrevo não tenho uma única dúvida quanto à maneira de grafar alguma palavra. Nesses momentos vou pro dicionário!

sábado, 2 de julho de 2011

Gerundismo é feio

Quem nunca ouviu falar de gerundismo? Ou quem nunca ouviu o outro criticar o telemarketing porque está cheio dos gerundismos? Mas antes de adentrar a “questão gerundista”, deixem-me explicar a causa da escritura dessas linhas.
 
Recentemente ouvi um podcast bastante conhecido no mundo dos blogs (pelo menos penso que seja) quando em um dado momento da gravação o podcaster diz “Nós estaremos avisando...”. Logo em seguida o seu colega o repreende por usar o “gerundismo”. A justificativa para não usar tal estrutura: são dois verbos quando somente um basta. Segundos depois alguém mais ao fundo reclama que “é feio”.
 
Duas coisas: não está errado e tampouco é feio. Não tenho por pretensão tratar do certo e do errado na gramática normativa, mas abordar uma estrutura viva e muito bem usada na língua portuguesa, o gerúndio. Também não tenho interesse em explicar o que é o gerúndio, mas constatar sua existência na língua. E Já que a dúvida dos prescritivistas é se isto ou aquilo está certo ou errado na gramática, restrinjo-me a dizer que, pensando na tradição gramatical, está completamente correto o uso do gerúndio. Basta abrir qualquer gramática, sendo dos conceituados Celso e Cunha, do reconhecido Bechara, ou não, ver-se-á que o gerúndio está lá, entre as formas nominais do verbo.
 
E quanto ao feio? Feio que nada! Mas grandes escritores não ficam por aí de gerundismo, seus mais lindos poemas e romances não têm dessas coisas. “Por ti – as noites eu velei chorando, Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!” Escreveu Álvares de Azevedo em Soneto. Carlos Drummond de Andrade ao ver a amada “caída na areia do circo e o leão que vinha vindo”, deu “um pulo desesperado” e o leão comeu os dois na Balada de Amor Através das Idades. O Dom Casmurro de Machado de Assis deixou claro que a porta que ligava sua casa a de Capitu “abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro”. Provavelmente estes escritores não sabiam quão é feio usar o gerúndio. Não sabiam o português bonito, o português correto! Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras e um dos maiores cânones da literatura brasileira, certamente, deveria ter tido vergonha de escrever tais absurdos. Talvez Drummond merecesse ser preso pelos crimes cometidos contra a língua. Azevedo, no mínimo, não soube chorar nem sorrir.
 
O gerundismo foi/é o neologismo usado para se referir às pessoas que usa(va)m o gerúndio em excesso, principalmente o pessoal do telemarketing com o “vou estar transferindo”. Contudo, o preconceito que girou em torno do termo “gerundismo” acabou por criar a ideia de que o gerúndio é algo errado e inaceitável, ou melhor, criou a ilusão de que gerundismo e gerúndio são simplesmente a mesma coisa. Como já dito, o gerúndio é a forma nominal do verbo que representa uma ação contínua. E o gerundismo é uso desmedido da construção verbo ir conjugado + verbo estar no infinitivo + gerúndio: “Vou estar transferindo sua ligação para o próximo setor, para que o sr. possa estar confirmando os seus dados; e ao término da ligação, o sr. vai estar recebendo o protocolo de nosso atendimento.” Certamente a construção ir+estar+gerúndio tende a soar artificial e a um falso cumprimento do prometido, assim como a repetição excessiva demonstra ausência de domínio ou desconhecimento de outras estruturas. Um outro problema é quando temos uma ação pontual como enviar um e-mail e você simplesmente diz “Vou estar enviando um e-mail ao meu superior.” Esse ato enunciativo seria sintaticamente aceitável, do ponto de vista apenas estrutural (sem entrar na questão se o estrutural é suficiente), mas semanticamente confuso.  Contudo enunciações como “Passei a manhã de domingo cozinhando.”, “Estava estudando para a prova de história.” e “Estaremos avisando nossos ouvintes.” são completamente possíveis tanto do ponto de vista sintático quanto semântico. Elas indicam ações de continuidade e não pontualidade. Por isso não confundir gerúndio com ir+estar+gerúndio, e não sair por aí corrigindo as pessoas pelo simples senso comum ou pelo “achismo”, mero preconceito.